Publicado em 16 de março de 2019. Atualizado em 22 de setembro de 2020.
A decisão da Ford de fechar a sua unidade em São Bernardo do Campo, eliminando 2,8 mil funcionários diretos, 1,5 mil terceirizados e até 27 mil empregos indiretos gerou uma imensa repercussão na mídia e nas redes sociais e inúmeras justificativas para explicar esta decisão tão impactante na economia nacional, sobretudo na região do ABC. Confira a repercussão clicando aqui.
Mas quais seriam os motivos pelos quais a Ford tomou esta decisão?
Por que uma empresa que tem uma boa lucratividade e que paga ótimos dividendos toma uma decisão de impacto tão negativo como essa?
Será que o Ford realmente precisaria fechar esta fábrica?
Uma explicação muito popular nas redes sociais é que a empresa se acostumou aos eternos subsídios governamentais e com a proteção de mercado e ao pressionar o governo atual em busca de facilidades, recebeu uma resposta negativa que influenciou fortemente decisão.
Outra é que a culpa é do PT, que forneceu subsídios em excesso e sem contrapartida, além de ter provocado a maior crise da nossa história, fazendo com que a venda de veículos despencasse de mais de 3 milhões de unidades para pouco mais de R$ 2 milhões em 2018.
Há também a corrente que diz que a Ford tem no Brasil mais de 2.400 processos trabalhistas, que representa mais do que a soma de todos os processos trabalhistas da empresa em todo o mundo, então o motivo da saída é o excesso de sindicalismo e leis atrasadas que inviabilizam a produção.
Ainda, uma possível explicação é que a carga tributária brasileira, que é absurda, com impostos em cascata e altos encargos sociais que fazem com que o carro produzido no Brasil seja pouco competitivo nos mercados internacionais, teria levado a Ford a tomar tal decisão.
Outros dizem que a Ford lucrou alto por muitos anos e agora não aceita perder lucratividade.
É fato que a carga tributária brasileira é alta, extremamente complicada e mal projetada, encarecendo os custos de produção em comparação com países concorrentes.
O salário médio da nossa mão-de-obra não é dos mais altos do mundo, mas os encargos são muito altos, encarecendo ainda mais o custo dos produtos feitos aqui. A logística é ruim, a infraestrutura é ruim, a qualidade da mão-de-obra vem caindo, etc. Todos estes fatores pesam fortemente na decisão de uma empresa entre investir no Brasil ou em outro país.
Em mais de 20 anos de carreira, vi o Brasil perder fábricas novas para China, México, Paraguai, Estados Unidos e outros países, justamente pelos motivos citados acima.
Por outro lado, temos um suposto enorme mercado consumidor e barreiras alfandegarias que tornam os carros importados ainda mais caros que os nacionais, portanto é preciso estar aqui para conseguir competir.
Sim, é verdade que o Brasil tem problemas enormes, porém, estes problemas são comuns a todos os concorrentes.
Todos eles se beneficiaram dos períodos de altos lucros, todos eles tiveram benefícios fiscais, todos eles têm custo de mão-de-obra elevada, todos pagam tributos elevados e todos estão sofrendo com a queda do mercado doméstico e as dificuldades para exportar.
As dificuldades são as mesmas para todos os concorrentes e ao mesmo tempo em que a Ford fechou uma grande fábrica e a GM ameaça fechar outra, alguns fabricantes asiáticos anunciam novos investimentos, como a Hyundai que acaba de anunciar investimentos de R$ 125 milhões para sua fábrica em Piracicaba.
Será que após décadas no mercado brasileiro, a Ford finalmente perdeu a paciência, ou será que os motivos não são somente os problemas locais?
Vamos ampliar nossos horizontes e dar uma olhada no que está acontecendo no resto do planeta e nos EUA, sede da Ford:
- O mercado mundial de veículos leves continua crescendo, mas num ritmo cada vez mais lento.
- O mercado americano, que chegou a 8,5 milhões de unidades vendidas no fim da década de 90, caiu para 6,3 milhões de unidades em 2017, sendo que o Market Share da Ford caiu do patamar de 20% para pouco menos que 15% nos últimos 20 anos.
- O maior mercado mundial de veículos leves hoje é a Ásia, onde a China representa cerca de 60% das vendas.
- Os 6 maiores mercados (países) representam juntos 63% do mercado global.
- Enquanto o mercado global de veículos leves cresce de 1 a 2% ao ano, o de caminhões acima de 6ton cresce de 6% a 7% ao ano.
- Enquanto América do Norte e do Sul experimentam reduções na demanda por veículos leves e a Europa apresenta crescimento muito baixo, o crescimento mundial é fortemente impulsionado pela Ásia, sobretudo por China e Índia.
Pelos dados acima, verificamos que há uma clara mudança do eixo automobilístico em direção a Ásia, o que faz naturalmente com que as empresas americanas tenham maiores dificuldades competitivas.
Além das mudanças no mercado, vamos acompanhar algumas das megatendências para o setor, segundo a PwC:
- O carro do futuro segundo a PWC, é elétrico, autônomo, compartilhado e conectado. O que isso nos diz? Em primeiro lugar, que as empresas terão que investir muito em tecnologia para não perder espaço para novos entrantes como Tesla, Google, Apple, etc. Em segundo lugar, ao aumentar o compartilhamento, a necessidade de carros no mercado é reduzida, ou seja, se esta tendência se confirmar, a demanda por novos carros será reduzida.
- As novas gerações não tem os mesmos anseios de outrora. Enquanto as pessoas das gerações 70, 80 e 90 tinham como sonho fazer 18 anos para poder tirar a CNH e comprar um carro, as novas gerações querem MOBILIDADE. Ter carro está deixando de ser um status desejado. Os anseios das novas gerações estão muito mais focados em qualidade de vida e sustentabilidade.
- Alugar, emprestar, contratar ou usar um transporte por aplicativo está cada vez mais barato em relação a possuir o próprio carro. Grandes centros investem pesado em mobilidade urbana e aumentam sistematicamente as restrições à circulação de veículos. Famílias que possuem mais de um automóvel estão cada vez mais reduzindo a quantidade e utilizando transportes alternativos.
É claro que estas tendências acontecem em velocidades diferentes ao redor do mundo, mas também é fato que é uma questão de tempo até que se espalhem pelo planeta todo.
Então temos um cenário global de acirrada competição contra empresas asiáticas, que são reconhecidamente ágeis e eficientes, uma necessidade de aporte de investimentos gigantescos para desenvolvimento tecnológico e uma expectativa de redução ou estagnação de demanda no médio prazo.
O que acontece com o valuation da Ford?
Como isso tudo afeta o valuation da Ford?
Quando o mercado faz a avaliação de uma empresa como a Ford diversos fatores são levados em consideração, tais como: crescimento de vendas, lucratividade, dividendos e principalmente, expectativa de lucro futuro. Como tem se comportado o valor da Ford nos últimos anos?
Observe os gráficos:
O mercado avalia a empresa Ford em cerca de US$ 33,5 bilhões.
Esta mesma empresa já teve o seu valor próximo a US$ 120 bilhões em 1998 e teve seu pior momento em 2008 quando o valuation do mercado bateu em incríveis US$ 7 bilhões.
É importante observar que após uma boa recuperação da crise de 2008, a empresa vem perdendo valor sistematicamente nos últimos 5 anos, acumulando perdas próximas a 50% em relação a março de 2014.
Uma comparação interessante: enquanto a Ford vendeu US$ 160 bilhões e lucrou US$ 3,2 bilhões em 2018, a Tesla vendeu US$ 21,5 bilhões e teve prejuízo de US$ 0,388 bilhões no mesmo ano.
Como explicar que a avaliação da empresa Tesla pelo mercado é hoje de US$ 47,6 bilhões, ou seja mais de 40% superior a Ford? Será que a Tesla está sobrevalorizada ou será que a Ford está subvalorizada?
A explicação é que o mercado acionário é movido por expectativas e neste momento há um grande pessimismo em relação à Ford e um grande otimismo, possivelmente exagerado, em relação ao sucesso da Tesla. O mercado tem o costume de reagir de forma exagerada e casos como este abrem riscos e oportunidades ao investidor atento.
Em relação à situação financeira recente da Ford, embora as vendas da empresa tenham tido um modesto crescimento nos últimos anos, a lucratividade vem caindo e isso afeta fortemente a avaliação da empresa, enquanto que a Tesla surge com novos modelos, inovações incríveis e promessas de dominar a tecnologia e o mercado no futuro.
Observe o gráfico:
Fonte: http://www.yahoo.com/finance
O que uma empresa gigantesca, com milhares de funcionários e dezenas de fábricas ao redor do mundo deve fazer para garantir a sua sobrevivência futura e reverter as expectativas do mercado diante de um cenário tão desafiador?
Uma queda de volume de vendas tem um impacto severo nos resultados, pois as margens costumam ser relativamente baixas neste mercado e os custos fixos são bastante altos.
Com a redução das receitas e a manutenção dos custos fixos, a lucratividade cai rapidamente, sufocando a empresa e inviabilizando os investimentos necessários para que ela vença num futuro altamente dependente de alta tecnologia.
A solução mais provável para esta situação é trabalhar numa forte redução de custo fixo (fábricas e pessoas) e focar o negócio naquelas famílias de produtos e mercados mais lucrativos, porém é óbvio que qualquer movimento neste sentido é complicado e tem que ser feito aos poucos.
Temos algumas evidências claras de que a Ford está trabalhando nesta direção, por exemplo:
- Anúncio que a Ford vai deixar de fabricar veículos leves nos EUA e focar na produção de SUVs e Pickups.
- Desativação da produção do Focus na Argentina.
- Fechamento da fábrica no ABC.
- Acordo para produção de veículos e desenvolvimento tecnológico com a VW.
- A Ford anunciou a redução de 5.000 postos de trabalho na Alemanha.
- A GM também anunciou que fará milhares de demissões nos EUA e fechará fábricas.
Vejam agora as declarações de Bill Ford, presidente da montadora na CERAWEEK:
“Estamos tentando reposicionar a empresa de 115 anos pelas mudanças dramáticas que estão por vir, que podem incluir a venda de menos carros e o desenvolvimento de novas formas de mobilidade, como os patinetes elétricos.
Eu gostaria que a Ford ficasse por mais 100 anos, e se isso vai acontecer, é claro que realmente precisamos nos desviar para novas direções para tentar resolver alguns desses problemas”, disse Ford.
“É difícil porque o nosso atual modelo de negócios está fornecendo todos os ganhos e fluxo de caixa que financiam muitas dessas mudanças. Então, temos que fazer as duas coisas muito bem. Se não fizermos carros e caminhões fantásticos hoje que as pessoas querem, adivinhem? Não há amanhã”
Alguém reparou que ele falou em patinete? Será que a Ford está deixando de ser produtora de veículos para ser uma desenvolvedora de mobilidade urbana?
Sendo assim, o que podemos concluir sobre o fechamento da fábrica da Ford no ABC?
É impossível cravar um diagnóstico, uma vez que não temos acesso ao plano estratégico da Ford ou a informações privilegiadas, porém as notícias publicadas na imprensa e o cenário global nos permite chegar a algumas conclusões:
- A Ford avaliou que em função das megatendências do mercado, haverá estagnação ou redução do mercado global ao mesmo tempo em que haverá uma necessidade de altos investimentos para se manter competitiva.
- O peso dos custos fixos da empresa precisa ser rapidamente reduzido, focando no curto prazo nos mercados e produtos mais rentáveis e mais competitivos para que estes financiem os novos desenvolvimentos.
- Produtos com pouca competitividade, alto custo e margens baixas devem ser gradualmente eliminados, seja pelo fechamento de unidades produtivas, seja pelo desenvolvimento de parcerias com outras montadoras.
Por que fechar a fábrica do ABC?
É provável (e não podemos afirmar, apenas supor), que a Ford tenha feito uma enorme priorização para determinar a ordem na qual alguns custos seriam cortados ou negócios eliminados.
Os critérios prováveis para estabelecer uma lista de fábricas a serem fechadas podem ser: relevância do mercado, escala de produção, competitividade da unidade, custo de produção quando comparado a outras unidades, complexidade burocrática e custo da mão-de-obra, incluindo aí as dificuldades com leis trabalhistas, sindicatos, etc.
Ora, o Brasil é um mercado relativamente grande, mas muito longe dos grandes mercados da Ásia e América do Norte, sendo assim, temos pouca escala de produção.
Nossos custos de produção são altos por excesso de impostos, pouco volume, mão-de-obra, etc. e como nosso custo é alto, não conseguimos exportar e não conseguimos ter grande escala, fora isso, temos as complicações trabalhistas que fizeram com que as montadoras procurassem regiões distantes do ABC, inclusive a Ford, que montou uma unidade na Bahia (e que conta com incentivos fiscais).
A Ford passa claramente por um processo de transformação que está longe de acabar e infelizmente, este processo passa por fechamento de fabricas e reduções da força de trabalho. A unidade do ABC não foi fechada por causa do PT, do Bolsonaro, do Temer, da Reforma da Previdência, do Sindicato, dos processos trabalhistas ou das leis brasileiras, mas provavelmente alguns destes fatores ajudaram a colocá-la de forma desfavorável na lista de prioridades.
No mundo empresarial, é difícil tomar decisões impopulares ou radicais enquanto os resultados estão bons. É normal vermos empresas postergarem ações estratégicas importantes até um ponto em que é tarde demais. Sob este aspecto, é positivo que, aparentemente, a Ford está agindo no tempo adequado.
Estamos assistindo apenas ao começo de um longo processo de transformação da indústria automobilística que vai envolver a Ford todas as outras montadoras. Aparentemente, a Ford está se preparando para o futuro e suas ações hoje podem ser decisivas para que sobreviva por mais 100 anos. Muitas montadoras ficarão pelo caminho e talvez a Ford seja uma das vencedoras. É difícil imaginar que num futuro não muito distante, os EUA não tenham um grande player neste mercado. As ações da Ford (e da maioria das montadoras) estão em valores muito baixos quando comparados à média histórica, os dividendos estão na casa de 7% ao ano, o que é espetacular para uma indústria nos EUA, então me parece que comprar ações da Ford é uma ótima aposta de longo prazo, mas não coloque todos os seus ovos nesta cesta.
Sobre o autor: Nicolai Krogh é diretor da NeoVolution Consultoria e responsável pelas áreas de Avaliação de Empresas, Marketing e Gestão estratégica de negócios.
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